sábado, 27 de outubro de 2012

POESIA (exercícios de liberdade criativa).

 
 
POESIA/MICRO-FICÇÕES
 (em construção)
 
 
 
«Eu não quero ter a terrível limitação daqueles que vivem apenas em função daquilo que é passível de fazer sentido. Eu não! Eu quero uma verdade inventada por mim.»
(Clarice Lispector)



O MISTÉRIO DA PÁGINA EM BRANCO
 
Eis o poeta perante a secreta liberdadade da página em branco. Ele escreve uma palavra, e outra, e mais outra ainda, mas essas palavras acabam por não aparecer na página em branco. Qual é, afinal, o mistério da página em branco?



De facto, a secreta liberdade das palavras da grande Clarice Lispector possuem esse raro condão de nos fazerem entrar “dentro de nós próprios”, de tal maneira que somos constantemente surpreendidos pela estranha profundidade das suas observações (quase sempre apresentadas sob a forma de perguntas), e pela beleza encantatória das suas extraordinárias metáforas, contra as quais, aliás, ela própria se revoltava sistematicamente, por saber de antemão que não passavam de meras tentativas de aproximação poética em relação a qualquer coisa que lhe escapava das suas próprias mãos (sombras, reflexos, fantasmas), mas que, apesar de tudo, a ajudavam a fazer batota com a própria vida, ou pelo menos, a fazer de conta que vida é um misterioso jogo que vale a pena ser vivido, jogado, e saboreado até à exaustão da estranha liberdade da nossa própria imaginação!
Eusébio Almeida
 


 
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A FACA QUER MATAR AS PERSONAGENS DO LIVRO
(micro-ficção)
 
 
Entro numa das salas da Biblioteca Alexandre O`Neill,
 
sento-me numa cadeira de metal,
 
e retiro da gaveta um pedaço de papel amarrotado pelo tempo.
 
Depois pego numa faca bem afiada e começo a cortá-lo aos bocadinhos.

O papel começa a gritar,
e o sangue a escorrer devagarinho,
sempre sem parar.
Por isso, largo imediatamente o papel,
e fujo com a faca na mão em direcção a uma pilha de livros.
Depois espeto a faca em cima do «Crime e Castigo», de Dostoievsky.
O livro não suporta o peso da faca.
A faca não é uma faca.
A faca é o desejo do assassino,
e o desejo do assassino é o esboço duma vida.
A vida não suporta tanto peso.
Por isso, desenho no chão um círculo com a ponta dos dedos e escondo a faca lá dentro.
A faca começa logo a chorar.
Quer sair.
Quer fugir.
Quer gritar.
 Quer matar.
A faca quer matar as personagens do livro de Dostoievsky.
De faca na mão, abro novamente o livro.
Agora, estou de faca e de livro na mão,
mas não sei exactamente o que fazer!
 
O melhor é largar o livro?
O melhor é largar a faca?
O melhor é largar a faca e espetar o livro no chão?
O melhor é largar o livro e correr com a faca na mão?
O melhor é não largar a faca!
O melhor é não largar o livro!
O melhor talvez seja mesmo enterrar o livro e a faca no chão!
Assim, a faca acabará por perder a cabeça,
e o livro por justificar o crime do poeta revoltado.
(Antologia de Micro-ficção Luso-brasileira, no Prelo).
Lisboa,
Eusébio Almeida



 

 


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