POESIA/MICRO-FICÇÕES
(em construção)
(em construção)
«Eu não quero ter a
terrível limitação daqueles que vivem apenas em função daquilo que é passível
de fazer sentido. Eu não! Eu quero uma verdade inventada por mim.»
(Clarice
Lispector)
O MISTÉRIO DA PÁGINA EM BRANCO
Eis o poeta perante a secreta liberdadade da página em branco. Ele escreve uma palavra, e outra, e mais outra ainda, mas essas palavras acabam por não aparecer na página em branco. Qual é, afinal, o mistério da página em branco?
De facto, a secreta liberdade das
palavras da grande Clarice Lispector possuem esse raro condão de nos fazerem
entrar “dentro de nós próprios”, de tal maneira que somos constantemente
surpreendidos pela estranha profundidade das suas observações (quase sempre
apresentadas sob a forma de perguntas), e pela beleza encantatória das suas
extraordinárias metáforas, contra as quais, aliás, ela própria se revoltava
sistematicamente, por saber de antemão que não passavam de meras tentativas de
aproximação poética em relação a qualquer coisa que lhe escapava das suas
próprias mãos (sombras, reflexos, fantasmas), mas que, apesar de tudo, a
ajudavam a fazer batota com a própria vida, ou pelo menos, a fazer de conta que
vida é um misterioso jogo que vale a pena ser vivido, jogado, e saboreado até à
exaustão da estranha liberdade da nossa própria imaginação!
Eusébio Almeida
Eusébio Almeida
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A FACA QUER MATAR AS PERSONAGENS DO LIVRO
(micro-ficção)
Entro numa das
salas da Biblioteca Alexandre O`Neill,
sento-me numa
cadeira de metal,
e retiro da
gaveta um pedaço de papel amarrotado pelo tempo.
Depois pego numa
faca bem afiada e começo a cortá-lo aos bocadinhos.
O papel começa a gritar,
e o sangue a escorrer devagarinho,
sempre sem parar.
Por isso, largo imediatamente o papel,
e fujo com a faca na mão em
direcção a uma pilha de livros.
Depois espeto a faca em cima do «Crime e Castigo», de Dostoievsky.
O livro não suporta o peso da faca.
A faca não é uma faca.
A faca é o desejo do assassino,
e o desejo do assassino é o esboço
duma vida.
A vida não suporta tanto peso.
Por isso, desenho no chão um
círculo com a ponta dos dedos e escondo a faca lá dentro.
A faca começa logo a chorar.
Quer sair.
Quer fugir.
Quer gritar.
Quer matar.
Quer sair.
Quer fugir.
Quer gritar.
Quer matar.
A faca quer matar as personagens do
livro de Dostoievsky.
De faca na mão, abro novamente o
livro.
Agora, estou de faca e de livro na
mão,
mas não sei exactamente o que fazer!
O melhor é largar o livro?
O melhor é largar a faca?
O melhor é largar a faca e espetar
o livro no chão?
O melhor é largar o livro e correr
com a faca na mão?
O melhor é não largar a faca!
O melhor é não largar o livro!
O melhor talvez seja mesmo enterrar
o livro e a faca no chão!
Assim, a faca acabará por perder a
cabeça,
e o livro por justificar o crime do
poeta revoltado.
(Antologia de Micro-ficção
Luso-brasileira, no Prelo).
Lisboa,
Eusébio Almeida
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